sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Quinhentismo

Introdução:

Quinhentismo é a denominação genérica de todas as manifestações literárias ocorridas no Brasil durante o século XVI, correspondendo à introdução da cultura européia em terras brasileiras. Não podemos falar numa literatura do Brasil, aquela que reflete a cosmovisão do homem brasileiro, e sim numa literatura no Brasil, ou seja, uma literatura ligada ao Brasil, mas que denota a cosmovisão, as ambições e as intenções do homem europeu.

Dessa forma, espelhando diretamente o momento histórico vivido pela Península Ibérica, temos uma literatura informativa e uma literatura dos jesuítas como principais manifestações literárias no século XVI.

Momento histórico:

A Europa no século XVI vive o auge do Renascimento, com a cultura humanística desmantelando os quadros rígidos da cultura medieval; o capitalismo mercantil avança com o desenvolvimento da manufatura e do comércio internacional; o êxodo rural provoca um surto de urbanização.

Em conseqüência dessa nova realidade econômica e social, o século XVI também marca uma ruptura na Igreja: de um lado, as novas forças burguesas rompendo com o medievalismo católico no movimento da Reforma Protestante; de outro, as forças tradicionais ligadas à cultura medieval dos dogmas católicos reafirmados no Concílio de Trento (1545), nos tribunais e no índex (relação de livros proibidos) da Inquisição no movimento conhecido como Contra-Reforma.

Assim é que o homem europeu, especificamente o ibérico, apresenta-se em pleno século XVI com duas preocupações distintas: a conquista material, resultante da política das Grandes Navegações, e a conquista espiritual, resultante, no caso português, do movimento de Contra-Reforma. Essas preocupações determinaram as duas manifestações literárias do Quinhentismo brasileiro: a literatura informativa, com os olhos voltados para as riquezas materiais (ouro, prata, ferro, madeira, etc.), e a literatura dos jesuítas, voltada para o trabalho de catequese.

Por outro lado, afora a carta de Pero Vaz de Caminha, considerada o primeiro documento da literatura no Brasil, as principais crônicas da literatura informativa datam da segunda metade do século XVI, fato compreensível, uma vez que a colonização só pode ser contada a partir de 1530. A literatura jesuítica, por seu lado, também caracteriza o final do Quinhentismo, tendo esses religiosos pisado o solo brasileiro somente em 1549.

A literatura informativa:

A literatura informativa, também chamada de literatura dos viajantes ou dos cronistas, reflexo que é das Grandes Navegações, empenha-se em fazer um levantamento da "terra nova", de sua flora, fauna, de sua gente. Daí ser urna literatura meramente descritiva e, como tal, sem grande valor literário. No entanto, seu valor histórico deve ser salientado, pois esses documentos são a única fonte de informação sobre o Brasil do século XVI. A principal característica dessa manifestação é a exaltação da terra, resultante do assombro do europeu que vinha de um mundo temperado e se defrontava com o exotismo e a exuberância de um mundo tropical. Com relação à linguagem, o louvor à terra transparece no uso exagerado de adjetivos, quase sempre empregados no superlativo.

É curioso perceber que essa exaltação foi a principal semente do sentimento de nativismo que surgiria a partir do século XVII, elemento essencial para as primeiras manifestações contra a Metrópole.

Pero Vaz de Caminha

Escrivão da armada de Cabral, Pero Vaz de Caminha nasceu por volta de 1437, provavelmente na cidade do Porto; teve fim trágico na índia (Calecute), ainda no ano de 1500, assassinado pelos mouros. Sua "Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil", além do inestimável valor histórico, é um trabalho de bom nível literário. O texto da carta mostra claramente o duplo objetivo que, segundo Caminha, impulsionava os portugueses para as aventuras marítimas, isto é, a conquista dos bens materiais e a dilatação da fé cristã. Veja-se este fragmento:

Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma causa de metal, nem de ferro, nem lho vimos. A terra, porém, em si, é de mu to bons ares (...)

Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria, quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento de nossa santa fé.

Carta a EI-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil (fragmentos)

Senhor, posto que o capitão-mor desta vossa frota e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que se ora nesta navegação achou, não deixarei também de dar disso minha conta. (...)

E assim seguimos nosso caminho por este mar, de longo, até terça-feira d'oitavas de Páscoa , que foram 21 dias d'Abril, que topamos alguns sinais de terra. (...) E à quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves, a que chamam fura-buxos. E neste dia, a horas de véspera , houvemos vista de terra, isto é, primeiramente d'um grande monte, mui alto e redondo, e d'outras serras mais baixas a sul dele e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitão pôs o nome o Monte Pascoal e à terra a Terra de Vera Cruz. (...)

E dali houvemos vista d'homens, que andavam pela praia, de 7 ou 8, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro. (...) A feição deles é serem pardos, maneira d'avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos, Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. (...)

O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira e uma alcatifa aos pés por estrado, e bem vestido, com um colar d'ouro mui grande ao pescoço. Acenderam tochas e entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao capitão nem a ninguém. Um deles, porém, pôs olho no colar do capitão e começou d'acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizia que havia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como que havia também prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo, que aqui o capitão traz, tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como que os havia aí. Mostraram-lhes um carneiro, não fizeram dele menção. Mostraram-lhes uma galinha, quase haviam medo dela e não lhe queriam pôr a mão, e depois a tomaram como espantados.

(CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a EI-Rei Dom Manuel. Introdução, atualização do texto e notas de M. Viegas Guerreiro. Lisboa, Imprensa Nacional, 1974.)

Senhor:


referência a D. Manuel, mais adiante tratado por Vossa Alteza.

capitão-mor:


referência a Pedro Álvares Cabral, capitão de toda a esquadra; cada nau tinha um capitão, subordinado ao capitão-mor.

nova:


notícia (apenas o primeiro nova, substantivado por um artigo a; não confundir com o adjetivo nova que aparece em seguida).

minha conta:


meu relato.

de longo:


para adiante, no sentido de seguir em frente.

oitavas de páscoa:


a semana que vai desde o domingo de Páscoa até o domingo seguinte, conhecido como Pascoela.

topamos:


encontramos.

fura buxos:


tipo de ave marinha comum no litoral tropical.

horas de vésperas:


fim de tarde próximo das 18 horas (véspera = vespertino, vesperal).

terra chã:


terreno plano e de pouca altitude; planície.

nem estimam:


nem se importam; nem se preocupam.

vergonhas:


órgãos sexuais.

alcatifa:


tapete.

A literatura dos jesuítas:

Conseqüência da Contra-Reforma, a principal preocupação dos jesuítas era o trabalho de catequese, objetivo que determinou toda a sua produção literária, tanto na poesia como no teatro. Mesmo assim, do ponto de vista estético, foi a melhor produção literária do Quinhentismo brasileiro. Além da poesia de devoção, os jesuítas cultivaram o teatro de caráter pedagógico, baseado em trechos bíblicos, e as cartas que informavam aos superiores na Europa o andamento dos trabalhos na Colônia.

José de Anchieta

O "grande piahy" ('supremo pajé branco'), como era chamado pelos índios, nasceu na ilha de Tenerife, Canárias, em 1534. Veio para o Brasil em 1553; no ano seguinte fundou um colégio em pleno planalto paulista, embrião da cidade de São Paulo. Faleceu no litoral do Espírito Santo, na atual cidade de Anchieta, em 1597.

Anchieta nos legou, sempre como parte de um exaustivo trabalho de catequese: a primeira gramática do tupi-guarani, verdadeira cartilha para o ensino da língua dos nativos (Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil); várias poesias, seguindo a tradição do verso medieval (destaque para o "Poema à Virgem" ou, no original em latim, "De Beata Virgine Dei Matre Maria"); vários autos, também de natureza medieval, segundo o modelo deixado por Gil Vicente, misturando a moral religiosa católica aos costumes dos indígenas, sempre preocupado em caracterizar os extremos, como o Bem e o Mal, o Anjo e o Diabo.

A Santa Inês



Cordeirinha linda,
como folga o povo
porque vossa vinda
lhe dá lume novo!




Nossa culpa escura
fugirá depressa,
Pois vossa cabeça
vem com luz tão pura.




Vinde mui depressa
ajudar o povo,
pois, com vossa vinda,
lhe dais lume novo.


Cordeirinha santa,
de lesu querida,
vossa santa vinda
o diabo espanta.




Vossa formosura
honra é do povo,
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.




Vós sois, cordeirinha,
de lesu formoso,
mas o vosso esposo
já vos fez rainha.


Por isso vos canta,
com prazer, o povo,
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.




Virginal cabeça
pola fé cortada,
com vossa chegada,
já ninguém pereça.




Também padeirinha
sois de nosso povo,
POIS, com vossa vinda,
lhe dais lume novo.


(ANCHIETA, José de. ln: José de Anchieta - Poesia. 3. ed Rio de Janeiro, AGIR, 1977. p. 28-9.)

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